Priorização das vidas ou repressão violenta? O papel da BM em junho de 2013
Na terceira reportagem do especial de cinco anos dos protestos de Junho de 2013, o Sul21 aborda a ação da polícia ante as manifestações em Porto Alegre. Confira ainda a primeira, a segunda e a quarta reportagens.
Giovana Fleck
11 de junho de 2018
É o início da tarde de uma segunda-feira quando o ex-governador Tarso Genro (PT) cruza as pernas, toma o último gole de café e coloca a xícara na mesa ao seu lado. “Tem uma história curiosa que eu nunca contei”, inicia.
Lembrar de 2013, para o ex-governador, não é nada penoso – pelo contrário. Reconhecido – para o bem e para o mal – por sua atuação durante as manifestações, Tarso diz não se arrepender em momento algum de suas decisões. Em especial, de ter priorizado a vida ao patrimônio. “Quando eu disse isso, se voltou contra mim todo o aparato de informação da imprensa tradicional no Rio Grande do Sul porque o costume dos governadores e da própria Brigada Militar, o costume “naturalizado”, é colocar a vida e a propriedade em primeiro nível. Ou, às vezes, até a propriedade em primeiro lugar. Esta inversão me custou muito caro. Me fez perder uma parte do apoio da classe média aqui no Rio Grande do Sul. Mas eu não me arrependi, aquilo foi profundamente educativo. Teve uma influência positiva na composição doutrinária da força policial do Estado. E isto, um dia, vai voltar. Vai voltar como uma doutrina.”
Há cinco anos atrás, Tarso Genro ocupava o mais alto cargo do executivo gaúcho. Em um Estado abalado pela tragédia da Boate Kiss, com profundo histórico de mobilizações populares e uma diversidade de pautas sendo colocadas nas ruas, Tarso sentiu a necessidade de pedir auxílio. “É a primeira vez que vou falar sobre isso, mas teve uma noite… Eu liguei pra Dilma às 23h30 e disse para ela: “Presidenta, aqui em Porto Alegre eu tenho 60 mil pessoas na rua, aproximadamente. A senhora tem que nos dar uma direção”.
A resposta, no entanto, não foi condizente com o que o ex-governador esperava. “A presidenta de uma forma muito prudente me disse: “Olha, Tarso. Eu não devo colocar esses movimentos no colo do governo federal. São movimentos relacionados com as prefeituras e relacionados com os estados”. Ao que ele replicou dizendo que “quando as coisas são relacionadas com os estados e municípios, isso já é uma questão do governo federal”, sugerindo que Dilma chamasse para si a negociação política. “Ela disse: “Bem, vou pensar”.”
Em 24 de junho de 2013, Tarso e os outros governadores e prefeitos das capitais foram convocados para uma reunião no Palácio do Planalto. Ali, foram firmados cinco pactos nacionais: por responsabilidade fiscal, reforma política, saúde, transporte, e educação. “Mas eu chego na reunião de governadores e está lá o [Geraldo] Alckmin e o [Michel] Temer, dois personagens que depois desenvolveram o golpismo. Ali, eu me convenci que havia uma desconexão entre o que eu estava pensando que era aquele momento e aquilo que a presidente compreendia que era. Talvez eu estivesse mais próximo da verdade, não sei. Talvez ela estivesse mais próxima e eu mais longe.”
Em pesquisa CNI-Ibope de dezembro de 2013, Tarso Genro aparece como o governador que mais cresceu em aprovação após as mobilizações. Em relação à atuação da Polícia Militar, verifica-se que a maioria da sociedade gaúcha aprovou a condução do governo petista. Para 50% dos gaúchos, a Brigada Militar agiu com violência, mas sem exageros durante o que ficou conhecido como as Jornadas de Junho.
Entre as ações que podem ter contribuído para esta visão, pode-se citar a aprovação do projeto que estabeleceu o passe-livre para os estudantes das regiões metropolitanas – processo construído através do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES/RS). Além disso, pode-se citar a presença do canal de comunicação estabelecido por intermédio do Gabinete Digital. Extinto em 2015, o Gabinete possibilitou que audiências públicas fossem realizadas entre representantes do governo do Estado e membros da sociedade para debater pautas comuns a todos.
“Nós colocamos o movimento para dentro do palácio. Era um movimento que não tinha rumo ou liderança, era mais um encadeamento de pautas que emergiram de um mal estar social. O costume da oligarquia é transformar os conflitos sociais, econômicos, de organização da cidade em conflitos policiais. Assim eles se liberam, mandam a polícia reprimir e não resolvem os problemas”, opina.
17 de junho de 2013
Não era muito tarde da noite. Gabriel Galli e seu então namorado decidiram passar pelo protesto que estava acontecendo naquele dia na avenida João Pessoa. Não ficaram muito tempo. Gabriel tem um leve problema na coluna que faz com que ele não consiga caminhar por muito tempo.
Escolheram uma pizzaria para jantar. Comeram, pagaram e saíram. No caminho de casa, viram um menino correndo. Era um rapaz jovem. Rapidamente perceberam que ele fugia. Há alguns metros de distância, dois oficiais da Brigada Militar também corriam, na direção do menino. Alcançaram-no em poucos instantes. O menino veio ao chão. Os policiais passaram a agredi-lo com chutes e pontapés. “Espancaram ele, chamando de filho da puta para baixo”, recorda Gabriel.
Quase que em um reflexo, Gabriel e seu companheiro tiraram os celulares dos bolsos e começaram a filmar. “Foi quando eles nos detiveram.” Gabriel questionava os policiais, sem obter resposta. Assustados, ele e o namorado foram algemados.
Eles foram levados a pé para o posto da Brigada Militar da Praça XV de Novembro. Passaram em frente ao Hospital Santa Casa de MIsericórdia, onde um grupo de pessoas aplaudiu a situação. “Nos arrastaram pelo Centro inteiro. Passamos na frente da nossa casa, gritando. E eles nos segurando.”
Gabriel perguntava os porquês. Imediatamente, era mandado calar a boca. “Não fazia sentido pra mim. Queria saber o que estava acontecendo.” Em determinado momento, houve um conflito, seu namorado acabou levando socos no estômago e no braço.
Quando chegaram no posto, foram algemados a cerca de 20 outras pessoas. “Pegaram qualquer um na rua”. Gabriel continuou questionando os oficiais. “O que está acontecendo?”, gritava. Levou um chute no estômago e spray de pimenta no rosto.
Seu companheiro viu tudo. Desesperou-se. Com a reação, oficiais começaram a perguntar se eles eram um casal, em tom irônico. “Só um policial se contrapôs, tentando apaziguar os outros. Reconheceu que era errado e disse que iam respeitar.”
Depois, Gabriel foi levado para o banheiro do prédio. “Foi humilhante”, recorda sobre ter sido revistado nu.
Todos os detidos foram levados em um microônibus para a Zona Norte de Porto Alegre. A primeira parada foi no Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc). “Eu ainda não sei o motivo para terem nos levado para lá. Estavam muito perdidos. Mas não nos deixaram no Denarc por muito tempo.” Perto das 23h, foram todos levados ao Palácio da Polícia. Entre as 23h30 e as 6h da manhã seguinte, Gabriel conta ter ficado sem alimentação. “Nem água.” Durante o tempo de espera, ele começou a conversar com os outros detidos. “Eles contaram que estavam no protesto”.
O protesto em questão foi marcante na história de Porto Alegre. Durante o ato, majoritariamente contra o aumento da passagem de ônibus, manifestantes atearam fogo a um coletivo na avenida João Pessoa. Depois de um início de manifestação pacífica, houve o confronto com a polícia na Avenida Ipiranga, onde o Batalhão de Operações Especiais fez um cordão de isolamento próximo à esquina com a Avenida Érico Veríssimo e usou bombas de gás lacrimogêneo para conter manifestantes. Cavalos foram usados para dispersar a confusão.
“Os brigadianos jogaram gás e eles começaram a correr, até serem presos. Alguns estavam correndo para pegar o ônibus e os policiais gritaram e os detiveram. Correndo para pegar o ônibus”, conta Gabriel.
Após algumas horas, advogados chegaram para liberar os detidos. “No final das contas, a polícia entendeu que não havia motivo para nos manter ali”. Gabriel e seu namorado assinaram uma ficha. “Até hoje não sei direito o que era”. Voltaram para casa.
Um dia depois, Gabriel decidiu que não ia ficar quieto. “Eu fui ensinado a não ficar quieto quando vejo uma injustiça. Me ensinaram que Jornalismo é, muitas vezes, abrir mão dos próprios medos em prol do que se acredita”, inicia um texto publicado em seu perfil no Facebook. Com mais de mil compartilhamentos, a publicação conta em detalhes o que Gabriel e o companheiro viveram naquela noite.
Junto com o texto, o único vídeo que conseguiram salvar foi publicado. As imagens rápidas revelam a situação de conflito. Pouco pode ser visto na gravação que conseguiram salvar. Porém, logo de início, dois capacetes brancos refletem a pouca luz da rua, enquanto conduzem o jovem perseguido pelos braços. “Não precisa agredir o menino”, Gabriel diz. Em 16 segundos de filmagem, outro policial se aproxima, com o cassetete em mãos, e começa a discutir com Gabriel e seu companheiro.
Tanto o vídeo quanto a postagem de Gabriel repercutiram na mídia. “Foi matéria em vários veículos de comunicação. Aí o caso começou a ser bastante falado.” Ele o companheiro registraram o caso na Corregedoria da Brigada Militar. Foi fácil comprovar as agressões, o torso e os braços do casal ainda estavam roxos. No entanto, como muitos outros casos que chegam até a Corregedoria da BM, o de Gabriel não foi para frente.
“Jamais aceitaremos que uma instituição que deveria nos proteger seja o braço opressor de um Estado que não recebe mais o crédito de nenhum cidadão com o mínimo de capacidade racional. […] Fuja da ignorância, por favor”
Gabriel Galli, em postagem no Facebook de 18 de junho de 2013
Na época, a Brigada chegou a informar que, junto com Gabriel e seu namorado, outras 43 pessoas foram detidas, sendo 10 delas menores de idade. O comandante da Brigada Militar na época, coronel Fábio Fernandes, afirmou que a ação da polícia ocorreu porque um pequeno grupo estaria depredando uma concessionária de veículos na avenida Ipiranga. “Pelas condições que o território estabelecia, havia risco ao patrimônio e à vida das pessoas. Então a Brigada Militar entrou com uma ação mais firme no uso progressivo da força de uma intervenção moderada.”
Alguns dias depois, Gabriel foi convidado pelo governador Tarso Genro a depor em evento do Gabinete Digital. “Eu claramente me emociono na audiência. Especialmente quando o governador fala que ele orientou a polícia e que isso não deveria acontecer.”
Ao escutar isso, Gabriel diz ter reagido da forma mais calma que conseguiu. “Então o senhor não sabe o que está acontecendo com a polícia”, respondeu. “Ele disse que enquanto governador não controlava a polícia, o que para mim é absurdo.”
Gabriel conta que considerou a hipótese de processar o Estado. Chegaram a juntar a documentação, mas se convenceram de que seria em vão. “Ficamos muito frustrados. Provavelmente, ninguém seria responsabilizado no final.”
“Como reflexo, o que ficou pra mim foi um certo trauma da polícia. Eu não consigo confiar em policiais. Ainda que eu seja um homem branco de classe média.” Gabriel conta que chegou a perder uma oportunidade de estágio na época, por conta da repercussão de seu caso. “São situações com as quais eu tenho que lidar.”
Hoje jornalista, ele diz se sentir triste em saber que se passaram cinco anos sem que muitas pessoas entendam a complexidade do que foi 2013 e, especialmente, o que foi a violência policial. “Eu não duvido que a atuação da polícia na época tenha sido considerada boa. Porém, mesmo o muito bom, ainda é muito ruim pra gente. Eles saíam de noite pra caçar pessoas pra dar uma resposta para a comunidade, para a imprensa.”
28 de maio de 2018
Em sua sala no Tribunal de Justiça Militar do RS, o agora juiz Fábio Duarte Fernandes recebe a reportagem com um sorriso no rosto. Em cima da mesa, pilhas de processos. Ao lado, o uniforme de oficial estendido em um cabideiro. “Eu entrei na Brigada em 1982, me formei em 85. Fui trabalhar no Batalhão de Choque. Era a época da Constituição, havia muitos movimentos espalhados pelo Estado inteiro. O Batalhão de Choque era uma tropa, digamos assim, de pronto-emprego”, lembra.
Em 1988, Fábio fez o curso de especialização dos bombeiros. Atuou na corporação até 1999, quando foi convidado para trabalhar no gabinete do vice-governador – na época, Miguel Rossetto (PT). Depois, foi requisitado pela Prefeitura para compor o gabinete de Segurança Pública do Município. Formou-se bacharel em Direito, fazendo especialização em direito no estado e segurança pública, além de um mestrado em sociologia.
Com Tarso eleito, ele foi trabalhar no Palácio. Após o episódio da Kiss, foi convocado para assumir o comando-geral da Brigada Militar – em fevereiro de 2013.
“As manifestações começaram tímidas, digamos assim. E a Brigada foi se adequando a essa nova metodologia de manifestação. A minha experiência era de manifestação envolvendo sindicato, coisas organizadas com liderança. Essas manifestações não tinham uma liderança com quem se pudesse dialogar, negociar. Era uma pauta que unia a todos, inclusive a mim.” Ele ri. “A questão da corrupção, por exemplo. Da saúde, da educação. Mas a maior dificuldade era não identificar uma liderança”, completa.
A orientação primordial que recebeu foi de preservar a vida das pessoas. “A gente conseguiu mostrar para a sociedade, num governo de esquerda, que é possível tu garantir a vida das pessoas sem violência, sem truculência. Embora tenhamos tido casos assim.” Ele lembra do incêndio ao ônibus na João Pessoa, na mesma noite em que Gabriel e o namorado foram detidos. “Aquilo foi algo muito forte para a área da segurança.”
Fábio assegura que a instrução geral para todos os brigadianos era de não usar balas de borracha ou gás lacrimogêneo. Mas abriu uma exceção: em caso de risco ao próprio oficial. “No meu entendimento, se um oficial militar está protegido, ele não tem porque agredir as pessoas. Mas isso fazia parte da estratégia, proteger o servidor para que ele não atacasse as pessoas.”
Ele conta sobre um momento que lhe foi relatado durante a queima do ônibus, de inversão de posições. “Tem uma cena, que eu não consegui recuperar, que é uma guarnição da BM cercada pelos manifestantes. Eles conseguiram negociar a sua saída pacificamente. Então, claro, tanto o movimento quanto as instituições foram evoluindo e aprimorando a sua metodologia de ação.”
Esse aprimoramento, segundo ele, veio através do diálogo entre o comando e a tropa. “A atuação do policial militar é muito tênue. Ele está entre dois mundos. O sujeito tem que tomar decisões em segundos, se mata ou não. Nós precisamos conhecer essa profissão para ajudar esses servidores a construir uma sociedade mais fraterna e mais solidária”, aponta o hoje juiz militar. “Vocês não se preocupem se um jornalista quiser tirar uma foto de vocês trabalhando”, ele dizia para os oficiais. “O que vocês tem que se preocupar é em fazer a coisa certa. Se estiver certo, não tem porque não deixar fotografar. E eu dizia para os comandantes: “O que tu não puder dizer para um jornalista, tu não faz”.
No entanto, balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo foram usadas. Não só isso, muitos dos equipamentos estavam vencidos. “Nós não autorizamos o uso porque nós não viamos necessidade disso. O lacrimogêneo era um instrumento de proteção da tropa. Então, se nós conseguíssemos utilizar essa técnica eu consigo proteger a tropa dentro da ideia de que, se o brigadiano está protegido ele não vai agredir”, afirma o então coronel.
Segundo ele, houve “um caso ou outro que era usada [bala de borracha], mas não era autorizado”. “Nós não tivemos relato oficial de pessoas que tivessem sido atingidas. Houve um episódio em um jogo do Grêmio em que uma pessoa chegou a perder a visão de um olho. Mas era um negócio dissociado das manifestações.”
Ele conta ter sido informado sobre os equipamentos vencidos durante uma coletiva de imprensa, quando um jornalista o questionou e mostrou o artefato. “Houve momentos em que o país confiscou produção de material de guerra química. Isso foi em junho de 2013. O Brasil é exportador de artefatos de guerra química para países da África. E eu me recordo de uma reunião no Ministério da Justiça, com todos os comandantes de polícia, que havia falta desses artefatos para emprego em MG, SP, RJ, RS. Então, até onde eu sei, o ministro falou que ia reter a produção desses equipamentos para as polícias”, justifica.
Embora a embalagem afirme que o material “oferece perigo se utilizado após o prazo de validade”, a BM disse, por meio de sua assessoria na época, que não haveria risco. “Até hoje não sei se foi algo mais benéfico ou menos prejudicial”, afirma Fábio.
O juiz militar diz não acreditar que as ações da Brigada tenham incitado mais violência do lado da sociedade civil. “Eu acredito que isso tenha sido principalmente por conta dos black blocs e de grupos anárquicos – e que o movimento não compactuava com isso. Davam conta de que queriam se manifestar e buscar a pauta que a sociedade tinha comprado. Mas eu não acho que o movimento – como Pula Catraca, Marighella Vive, Juventude de Esquerda – essa turma não queria, me parece, essa agressividade. Quem jogava molotov na tropa, bola de gude, pedras… Não era o movimento. Durante as manifestações, os estudantes se recolhiam. Saíam fora. Havia um início em que estava todo mundo e depois ficava a turma mais incendiária, inclusive, saqueadores que se aproveitavam do movimento.”
Para ele, um dos momentos em que a atuação da Brigada se consolidou frente a outras instâncias foi durante a ocupação da Câmara Municipal de Porto Alegre. Com a redução no número de participantes nos protestos, a partir do final de junho, outras formas de mobilização foram emergindo. Assim, espaços públicos começaram a ser ocupados como forma de se conquistar reivindicações específicas.
No dia 10 de julho, a Câmara recebeu o grupo de manifestantes que não iria deixar o prédio pelos próximos oito dias. Acampados, os ativistas se organizavam de maneira democrática para estabelecer suas pautas, por meio de assembleias e votações.
“O vereador Dr. Goulart (PTB), presidente da casa na época, deixou eles entrarem, e me ligou, dizendo que a Brigada tinha que tirá-los. Eu disse: “O senhor que entre na Justiça. Se o juiz determinar, nós vamos retirar”, conta Fábio. No final, a saída ocorreu mediante um acordo envolvendo a presidência do Legislativo e o poder Judiciário. Os manifestantes concordaram em desocupar o local após a elaboração de dois projetos de lei: garantindo passe livre para estudantes, desempregados, indígenas e quilombolas; e determinando a abertura das contas das empresas que operam o transporte público. Os projetos foram redigidos pelo Bloco de Luta e protocolados por vereadores do PSOL e do PT, mas acabaram engavetados durante a tramitação.
“Vereadores me ligavam. Alguns pedindo que a BM entrasse, outros que não entrasse. Mas não era uma questão de segurança pública. A sociedade não aceita essa definição clara de papéis. Ela quer alguém para resolver o problema. Desde que não afete o filho dela ou ela mesma.”
Coronel Fábio Duarte Fernandes
20 de junho de 2013
Martina Pereira Gomes integrava o Bloco de Luta em 2013. Ela tinha acabado de se graduar em Pedagogia e era professora concursada do Instituto de Educação General Flores da Cunha. Sua participação no movimento começou em abril daquele ano, na luta contra o aumento das passagens. “As pessoas não conversavam sobre política até então”, opina.
Segundo ela, até abril o movimento era disperso: “Ninguém sabia o que fazer.” Em junho, a história mudou. “As pessoas vieram com mais força.”
Martina conta que o mais difícil era lidar com o que chama de “infiltrados”. Por isso, o Bloco de Luta foi se empenhando em organização. “Quando um ato era organizado, montamos uma equipe para cuidar do trajeto e outra só para dialogar com a polícia. Mas eles [os brigadianos] eram um setor realmente violento, que mostrava durante as mobilizações que estava armado, tentando dividir o ato de diferentes formas”.
“Teve uma dispersão que eles fizeram nas proximidades da Esquina Democrática na noite do 20 de junho”, lembra. “Um [brigadiano] estava na [avenida] Borges de Medeiros, no alto de um prédio. Dali, ele jogou uma bomba de gás lacrimogêneo. Quando percebi, eram vários policiais em vários prédios jogando bombas nas pessoas. Era um aparato muito pesado. Na medida em que jogavam, parte da tropa agia pelas ruas.”
Tentando fugir, Martina entrou em um motel na rua Marechal Deodoro da Fonseca. Ela conta que não conseguia enxergar muita coisa. Ainda assim, conseguiu se juntar com outras pessoas que também estavam no ato. “Não nos conhecíamos, mas estávamos juntos. Tinha muita solidariedade”, lembra.
Para ela, a repressão policial é uma das memórias mais latentes de junho de 2013. “Eram pessoas que tinham trabalhado o dia todo e iam se manifestar. Eram pessoas sem capacidade nenhuma de ataque”. Para a grande maioria dos manifestantes, carregar vinagre e leite de magnésia virou hábito em junho de 2013. “A grande arma das pessoas era usar vinagre para que se proteger”.
Porém, o grande medo não era ligado aos protestos em si, mas à vida cotidiana. “Sentíamos que estávamos sendo vigiados a todo o momento.”
“Tinha um lugar onde nos reuníamos que era chamado de ‘segurança’. Ali, e em outros lugares que o Bloco frequentava, brigadianos começaram a se concentrar a partir de junho. “Não tinha um motivo aparente, mas começou a ter policiais.”
Fábio Duarte Fernandes, ex-comandante-geral da BM, admite que a força da Brigada monitorava as redes sociais do movimento. “A gente tinha monitoramento sim, é um troço aberto né. Até pra tu saber quantos confirmavam num evento. Uma logística para duas mil, 10 mil e 20 mil é diferente”, afirma. “Tem fotos pessoais postadas nos perfis do Facebook em processos que foram abertos mais tarde contra manifestantes”, critica Martina.
Ela diz não ter tido a dimensão do tamanho da criminalização na época.
“Em outubro daquele ano, a Brigada entra na casa de quatro companheiros nossos. Eles entraram e arrombaram. Sem mais nem menos. 2013 foi a primeira vez que a nossa geração teve contato com a polícia. Ali caiu a ficha de que éramos vistos como criminosos”.
Martina Pereira Gomes
Pouco tempo depois, a casa da mãe de Martina também foi alvo de uma ação policial. Quatro policiais estavam à procura de seu irmão, Matheus, também membro do Bloco de Luta. “Não tinha ninguém em casa. Por sorte, meu pai não estava longe e conseguiu abrir a porta antes que eles arrombassem. Pegaram um computador e livros do quarto do meu irmão.” Naquele momento, o movimento tinha se afastado da sociedade civil e do apoio popular. “Foi algo que gerou um impacto muito forte. Foi só medo.”
4 de outubro de 2012
Só que, para Martina, nada disso foi uma surpresa. Para ela, a atuação da Brigada se consolidou em 2013, mas começou um ano antes.
No final de 2012, centenas de jovens se reuniram em frente à Prefeitura de Porto Alegre para protestar contra a privatização dos espaços públicos da cidade e a remoção de famílias pobres para a execução de obras da Copa do Mundo de 2014. Dali, se deslocaram para o Largo Glênio Peres, logo ao lado.
Uma versão inflável do mascote da copa havia sido instalada no Largo, com patrocínio da Coca-Cola. Nessa noite, o boneco do Tatu Bola era guarnecido por cerca de 20 oficiais da Brigada Militar que faziam sua “escolta”.
Uma grade de contenção foi instalada no local. No entanto, quando alguns manifestantes desobedeceram seu limite, teve início uma noite de final imprevisível. Os oficiais avançaram na tentativa de conter os manifestantes com repressão física. O Batalhão de Choque chegou ao local e passou a usar bombas de gás lacrimogêneo. Oficiais da Brigada empunhavam cassetetes e atiravam balas de borracha. Segundo relatos, alguns manifestantes revidaram – mas a maioria se preocupou em correr para longe.
O soldado Eriston Mateus de Moura Santos foi atingido por uma pedra ou paralelepípedo, que resultou em oito pontos na cabeça. Mais de um mês depois do confronto, Santos começou a perder os movimentos das pernas. Ele é portador de encefalite autoimune – doença causada a partir da produção de anticorpos pelo sistema de imunidade do paciente, acarretando danos ao seu próprio sistema nervoso central. Segundo informações da BM na época, não houve relação entre o ferimento e a perda de movimentos do soldado. “Ele foi avaliado pelo médico de plantão da BM e encaminhado ao Hospital da Brigada Militar de Porto Alegre (HBM/PA), tendo sido submetido a exames de imagem, que não evidenciaram lesões neurológicas”, explica a corporação.
“Aquele incidente foi um dos sintomas que percorreram o país naquele momento, dada uma insatisfação em função da Copa do Mundo”, recorda Tarso Genro. “Não uma inconformidade com a Copa propriamente dita. Mas com os gastos públicos colocados dentro daquele espetáculo e que não foram negociados com as comunidades atingidas. Porto Alegre, que tinha uma tradição de participação popular muito forte, apresentou um sintoma muito particular que se mostrou bastante presente naquele incidente.”
“É um marco. Acendeu a luz vermelha para a gente. Não tínhamos a dimensão do que era esse enfrentamento mais explícito. Foi um movimento cultural, essa cultura da repressão. Foi, também, a primeira vez depois de muito tempo que tivemos um ato tão violento por parte da polícia”, diz Martina. “Ali, a polícia não foi só ostensiva. Ela interviu. E, no final de junho de 2013, o governador aparece elogiando a tropa. É contraditório.”
11 de junho de 2018
“Só posso dizer como eu reagi”, enfatiza o ex-governador Tarso Genro. “Por que os excessos aconteceram? Porque a memória do sistema repressivo é a memória da violência e não do diálogo com o outro. Está presente no imaginários dos aparatos de repressão e no imaginário do movimento. São raros os líderes de movimento, mesmo aqueles que não querem fazer um enfrentamento, que identificam também no aparato repressivo um conjunto de trabalhadores remunerados, mal remunerados frequentemente, que estão ali realizando a sua profissão. E que tem que ser também compreendidos e até conquistados pelo diálogo. Essa memória duplamente negativa dos dois lados que causa acidentes esporádicos que podem comprometer uma operação.”
Para o ex-governador, o que foi feito era o possível dentro das condições disponíveis. “O que eu não faria de novo? Muito difícil dizer. Foram movimentos muito específicos que surgiram com aquela massividade.”
E o que foi, de fato, feito? “A questão do transporte… fomos o único Estado que respondeu, criando o passe livre intermunicipal para ajudar os estudantes pobres. E não tivemos, inclusive, nenhuma proteção desse projeto depois que o nosso governo saiu. Isso foi simplesmente desmantelado depois e o movimento social não deu nenhuma resposta. Então, eu chego a concluir que a nossa resposta foi além das projeções do governo.”
“Por que os excessos aconteceram? Porque a memória do sistema repressivo é a memória da violência e não do diálogo com o outro. Está presente no imaginários dos aparatos de repressão e no imaginário do movimento.”
Tarso Genro
Porém, há algo de que ele se arrepende. “A única coisa que teria voltado atrás é que eu deveria ter dito que a vida deveria ter prioridade em relação ao patrimônio desde o início das manifestações, para que afastasse o risco de conflitos entre a BM e os manifestantes.”
Para ele, o movimento mostrou uma energia política importante de diversos setores sociais, mas, embora com muitas demandas justas, num determinado momento, foi manipulado. “Por mais que queiram colocar florzinhas em cima do movimento, ele foi manipulado para ser um movimento golpista. Para ser um movimento de embretamento da esquerda. Apesar de todas as crises e equívocos que um governo comete, e o dela [Dilma] era um governo em que a presidenta governa de maneira muito isolada do partido e dos seus governadores… Apesar disso, era um governo legítimo e infinitamente melhor do que o governo que a sucedeu.”
1 comentário
mauro · 28 de junho de 2018 às 22:07
quem bate relativiza, quem apanha não esquece