Na segunda reportagem do especial de cinco anos dos protestos de Junho de 2013, o Sul21 relembra como foram aquelas manifestações em Porto Alegre. Confira a primeira, a terceira e a quarta reportagens do especial.
Luís Eduardo Gomes
“Façamos como Porto Alegre”. Nos primeiros protestos em São Paulo contra o aumento das passagens de ônibus, em junho de 2013, lá estava a faixa que resumia o que foram os atos na capital gaúcha de janeiro a abril daquele ano. A luta porto-alegrense contra o aumento das tarifas havia saído de mobilizações difusas, que sequer conseguiam organizar todos os interessados em uma mesma frente, para exemplo nacional.
O primeiro ato em São Paulo ocorreu no dia 3. “Eles vão numa tática de não parar. Fazem todos os dias. A primeira repressão que aconteceu lá, não foi nem das mais fortes, já fazem uma chamada nacional. E aí a gente entra em solidariedade a São Paulo e contra a revogação da liminar [que suspendia o aumento de Porto Alegre e circulava a informação que estava para ser derrubada]”, lembra Matheus Gomes, historiador e integrante do Bloco de Luta à época. “A repressão é importante para identificar o sentido de junho. Se fala muito do junho reacionário, de classe média, só que não foi bem assim. A repressão que pega em 13 de junho em São Paulo é uma repressão contra movimentos sociais de esquerda, o MPL, o MTST, PSTU, o PSOL, sindicato dos Metroviários, DCE da USP. Eram esses movimentos que puxavam os protestos”, explica.
Em 13 de junho, o Bloco de Luta convoca um novo protesto em Porto Alegre em solidariedade a São Paulo. Milhares vão às ruas, agora, acompanhados de perto pela cavalaria da Brigada Militar. A repressão aperta. Também é nesse momento que as ações de um pequeno grupo de jovens vestidos de preto, com as cabeças cobertas por capuzes e os rostos por lenços, com idades, em geral, entre 16 e 20 anos, apareceriam. Ninguém sabe direito de onde vêm, mas eles deixariam suas marcas. Contêineres virados e queimados, vidraças quebradas. Na Cidade Baixa, a ação policial. Bombas e gás por todos os lados, atingido encapuzados ou não. Na esteira do que ocorria em São Paulo, jovens ativistas digitais fotografavam e filmavam tudo para a Mídia Ninja e outra iniciativas independentes de midiativismo que surgiam na mesma rapidez com o que os protestos se espalhavam pelo País. Antes mesmo de o protesto acabar, as imagens da repressão, da perseguição de pessoas dentro de bares já haviam sido vistas milhares de vezes.
O Bloco tinha uma página no Facebook com mais de 15 mil seguidores. Cada evento convocado por ele nas redes atraía dezenas de milhares de pessoas. Era através desses espaços que informações eram passadas e que partiam as convocações para a rua. Na vida offline, seus integrantes faziam “agitações”, divulgando panfletos no Centro, em centros acadêmicos e nos locais em que cada uma das entidades circulava. Chegou-se até a conseguir apoio de carros de som para chamar para os atos. Mas, para Lucas Maróstica, estudante que integrava o Bloco de Luta, o fator definitivo para que os atos “bombassem” era o boca-a-boca virtual. “Muitas pessoas tinham celular e postavam imediatamente o que estava acontecendo. Os eventos bombavam absurdamente. O Facebook, com toda a certeza, cumpriu um papel importante naquele processo”, diz. “Amanhã vai ser maior”, diziam os manifestantes. E era.
As mobilizações haviam encorpado. As assembleias do Bloco de Luta agora reuniam números cada vez maiores de participantes. Eram longos debates. Quem eram os black blocs, era um deles. Os movimentos mais tradicionais, ligados a sindicatos e partidos, repudiavam suas ações. Já as alas mais libertárias dos movimentos autonomistas e anarquistas defendiam. Não por que os conhecessem, mas mais pela convicção de que não caberia a eles criminalizar os impulsos daqueles jovens.
Luciano Fetzner, dirigente do SindBancários e ex-integrante do Bloco de Luta, pontua que, inicialmente, dentro do Bloco não existiam pessoas identificadas com as táticas black blocs e que mesmo as lideranças anarquistas e autonomistas não os conheciam. “Tinha uma que outra liderança dos anarquistas mais radicais que protegiam aquele processo. ‘É democrático, tem que deixar os piás fazerem o que quiserem’. Mas era algo que veio de fora”, conta, acrescentando que as discussões sobre permitir ou não a atuação dos encapuzados gerou rusgas internas dentro do movimento. “Tinha uma relativização mais evidente por parte do grupo anarquista e autonomista. Até porque eram essas pessoas que conheciam esse sujeitos, sabiam quem eram, e até transitavam entre um grupo e outro”, diz Murilo Gelain, cientista social.
Então ligado à Federação Anarquista Gaúcha (FAG), Murilo destaca que já percebia desde a década a passada a tentativa de construção em Porto Alegre da tática black bloc, inspirada nas ações que ocorreram nos protestos contra o G7 em Seattle (EUA), em 1999, e que se espalhariam especialmente por países como França e Alemanha, a partir da década seguinte. Segundo ele, pequenos grupos de cinco, no máximo 10 dez pessoas, ligados a movimentos anarcopunks, tentavam importar essas práticas, mas ainda de maneira incipiente. As primeiras ações visíveis mesmo, ele data de 2013. “Era mais ou menos organizado. Vamos para a rua, cometer alguma ação ilegal, quebrar uma vidraça, colocar fogo em algo, mas vamos esconder o rosto”, explica. “Eles acreditavam que tu iniciar uma ação de violência pode vir a despertar um processo político e que poderia culminar, em última instância, em uma revolução”. Em sua maioria, eram secundaristas e jovens universitários. “Essa galera não ia nas assembleias ou, se iam, não se identificavam como black blocs. Não chegavam na assembleia dizendo: ‘vamos queimar a Honda’”, diz Murilo.
Havia ainda o debate, que permanece em alguma medida até hoje, de que o grupo de mascarados seria formado por infiltrados nos protestos e até por policiais disfarçados, conhecidos como P2. Murilo avalia que a infiltração de agentes de segurança existiu de fato, mas não era a composição total do grupo e, além disso, acredita que estes agentes eram facilmente identificáveis e acabavam expulsos dos protestos.
“Os black blocs sabiam quem era quem, mesmo com a cara tapada. A gente mesmo, quando conhece algumas pessoas, vê de cara tapada e consegue identificar. Não só pela fisionomia, mas pela roupa, pelo óculos, pela mochila. E aí é fácil identificar os P2 também”, diz.
Ele lembra de um ato em que apareceu um casal com os rostos encobertos por bandanas e camisas pretas estranhamente muito novas. Os membros da comissão de segurança do Bloco então se aproximaram deles, perguntaram de onde eram, o que estavam fazendo. Quando não souberem responder, foram convidados a se retirar do protesto. “Os caras saíram e foram direto para o caminhão da Brigada que estava a alguns metros observando”, conta, ressaltando, porém, que nem sempre as pessoas expulsas eram mesmo infiltradas e que ao longo do tempo acabou se criando uma certa “paranoia” para expulsar todo mundo que não tinha o “perfil de manifestante”.
Fetzner diz que até hoje não é capaz de concluir se tratava-se de uma revolta de adolescentes ou se havia outro objetivo por trás, incitando aqueles jovens para “queimar o filme” dos protestos. “Não tinha organização, não tinha diálogo entre eles, era um bando de loucos de preto, com a cara tapada, fazendo o que dava na telha. Desde jogar pedra até brigar entre si, botar fogo nas coisas ou estar só enchendo a cara”, diz.
Já Murilo acredita que os black blocs também tinham um papel a cumprir, considerando que os protestos eram reprimidos pela polícia, era necessário que se pensasse em como se resistiria a isso. E aí entravam os mascarados com escudos feitos de tapume, kits de primeiro-socorros. “Isso é necessário, mas daí a querer transformar toda manifestação em um possível gatilho revolucionário ou sair atacando qualquer vidraça que represente o capital e o Estado, porque são inimigos, não é a maneira mais correta de agir estrategicamente”, diz.
Apesar de à época parecer que ocorriam protestos todos os dias em Porto Alegre, na verdade foram apenas cinco de grandes proporções. Além de 13, também ocorreram em 17, 20, 24 e 27 de junho. Todos registraram forte repressão policial, com exceção do último, com mais de 20 mil pessoas, em que a Brigada foi orientada a evitar o máximo possível o confronto.
O Bloco de Luta cresceu muito naquele processo. Mas nem todos que foram chamados para a rua compartilhavam da pauta do transporte. A organização, horizontalizada, enfrentava dificuldades para manter o controle dos atos. Depois da forte repressão policial contra um protesto realizado em São Paulo no dia 17 de junho, em que até funcionários da grande imprensa, que até então criminalizava as manifestações, foram vítimas da repressão, o teor da cobertura mudou. Não era mais baderna, eram ações democráticas.
Talvez nada simbolize melhor a guinada na cobertura do que dois comentários feitos por Arnaldo Jabor no Jornal da Globo. Na noite do dia 13, os protestos eram, para ele, “ignorância política”. Quatro dias depois, um momento “histórico, lindo e novo”.
Aos poucos, entravam as camisetas amarelas, saiam as bandeiras dos partidos. “Durante os protestos, eu ficava indo e voltando. A multidão se estendia por 20 quadras e parecia uma escola de samba. Tinha o caminhão do MST tocando a pauta de transporte do Bloco, tu andava uma quadra tinha um bloco de pessoas de verde amarelo falando mal do governo federal, andava mais uma quadra e era a molecada secundarista falando das escolas deles. Pulverizou totalmente”, diz Fetzner, que também afirma ter visto militantes de partidos de esquerda serem agredidos e terem suas bandeiras arrancadas nos atos.
As pautas também mudaram. Já não era “só” por 20 centavos. Era por muita coisa, mesmo que fosse uma pauta corporativista do Ministério Público que até hoje ninguém sabe direito como virou tema de cartazes que diziam: Contra a PEC 37. Também se protestava contra a corrupção, contra o governo federal. “O troço, que era um movimento contra uma ação direta da Prefeitura, de aumentar a passagem, virou uma carta com duas laudas de reivindicações para ser entregue para o governador do Estado. Pela força que o movimento ganhou, olhos não tão de esquerda, não tão populares, não tão engajados pensaram: ‘Opa, tem coisa boa aí’. O giro foi muito rápido”, avalia Fetzner. “Na época, não nos parecia, mas os nego véio, o pessoal orgânico, nos alertava que colocar o governo federal como grande inimigo aliado ao argumento de que ‘nenhum partido me representa’ significava o ‘ovo da serpente’ do fascismo. Tinha quem ouvia, quem largava de mão, mas a maioria não dava bola”.
Percebendo os ventos que sopravam, o MPL, em São Paulo, se retirou dos atos. “Quando o MPL sai, em 21 de junho, sexta-feira, acho que gente tem uma derrota muito grande”, avalia Matheus. A decisão não tem efeito sobre a continuidade dos atos, que continuavam quase diários, crescendo cada vez mais. Em Brasília ocupou-se a fachada do Congresso. No Rio, centenas de milhares nas ruas. Em todo o País. De fato, a passagem já não era mais o centro.
Para Maróstica, no momento que a imprensa e os setores conservadores da sociedade viram que havia uma brecha para desgastar o governo federal petista, os movimentos que integravam o Bloco de Luta em Porto Alegre, bem como aqueles que compunham as organizações que convocavam as marchas contra o aumento da passagem em outras capitais, cometeram o erro de achar que tinham o controle do processo.
“Eram organizações muito pequenas, Juntos, FAG, Anel, etc, que hoje não têm representatividade nenhuma na sociedade brasileira. Será que elas dirigiram aquele processo? Acho que houve um delírio de achar que dirigiram. Durante um tempo, quando era sobre o transporte público, até dirigiram. Agora, quando ganhou uma dimensão nacional, aí já era outra coisa”, avalia.
Murilo acredita que uma das razões para os protestos terem sido “contaminados” pela pauta mais à direita era de que ninguém esperava, dentro do Bloco, que eles tomariam a dimensão que tomaram, então não houve uma preparação ou debate sobre como agir quando as pautas superassem a luta pelo transporte coletivo. “Quando se percebeu, se pensou: fudeu”.
Ele até acredita que, mesmo depois de as pautas se pulverizarem, ainda seria possível controlar os rumos dos debates e disputar a coordenação das massas, mas para isso seria necessário uma apropriação de novas linguagens de comunicação e de ações que não eram naturais aos diferentes grupos de esquerda que compunham o órgão, especialmente aqueles que eram baseados na lógica da disputa partidária.
“Ainda estamos muito ligados a essas estruturas mais clássicas de partido, organização e movimento. Acho que ali ficou muito evidente a desesperança com a política. Se a gente tivesse o domínio que a direita tem ou tinha do YouTube, do Twitter, do Facebook, dos memes, talvez a gente pudesse ter direcionado aquela pauta”, diz Murilo.
Como o MPL, o Bloco também chegou a puxar o freio de mão. O ato do dia 17, por exemplo, não foi convocado oficialmente pela coalizão de movimentos, pelo contrário, em reunião da comissão de organização é vitoriosa uma posição divergente que preferia aguardar mais os desdobramentos nacionais antes de realizar uma nova manifestação. Pouco adianta, eventos surgem convocando mobilizações na data. O Bloco entra na esteira. “Mas, como a gente não convocou, a imprensa, principalmente a Zero Hora, se aproveita, pega a galera que tinha convocado e começa a fazer perguntas. ‘O que vocês defendem?’, e a galera defendia de tudo”, lembra Matheus.
O movimento então recoloca o time em campo com a ideia de disputar a narrativa. Para Matheus, com essa decisão, a pauta não foi “entregue à direita” em Porto Alegre. Contudo, diz que é, nesse momento, que o governador Tarso Genro (PT) “malandramente” avalia que havia infiltrados nos movimentos sociais e que poderia se tratar de uma armação contra o partido. “Só que no dia 20, na minha opinião, a gente retoma o controle”.
Matheus avalia que junho liberou dois tipos de “impulsos radicais” diferentes. Por um lado, os movimentos sociais e dos partidos à esquerda dos governos petistas, por outro, as forças de direita, com as sementes de movimentos como MBL, Vem Pra Rua e até neonazistas. Ele reconhece que, dentro do bloco, havia dificuldade de lidar com esses dois flancos, mas repudia a análise posterior de que junho resultaria no golpe contra Dilma Rousseff. “O impulso radical que foi combatido naquele momento era da esquerda, com a criminalização dos movimentos sociais. Por isso que vem lei de organizações criminosas em dezembro, lei antiterrorista em 2014”, diz.
Ainda assim, ciente do choque de narrativas e de que as disputas já não eram mais internas, o Bloco flexibiliza e libera seus integrantes para levarem o maior número de bandeiras possível para a rua. “Quando a coisa começou a crescer, até os ultra autonomistas passaram a defender que não podia ser tão sem controle assim”, recorda Fetzner.
A pergunta que poderia ser feita é: “Por que continuar?” Murilo diz que, no interior do bloco, nunca ouviu alguma conversa sobre ser possível “revolucionar o transporte”, mas como estava dado que não era possível parar as mobilizações, o Bloco tinha que continuar andando. “Já não tinha uma visão estratégica. Acho que ninguém pensava que se faria uma revolução. No máximo, que se poderia instituir a municipalização do transporte. No máximo, máximo, acho que era isso”.
O que não dava mais, nesse momento, era para disputar a organização física dos atos nas ruas. Nas reuniões, a comissão de segurança chegou a reunir centenas de pessoas para tentar organizar como funcionariam os trajetos, mas, na rua, essa organização era “patrolada” pela massa. “O mais interessante é que não tinha racha quanto a isso, do mais anarquista ao centro-esquerda, mas se perdia o controle”, diz Fetzner.
Um dos fatores que impediam que o trajeto programado fosse seguido era o caráter simbólico que acabou envolvendo as tentativas de os protestos chegarem às portas da sede da Zero Hora, na esquina das avenidas Ipiranga e Érico Veríssimo. “No momento que chegar na Zero Hora virou o desafio, acabou. Se organizava o ato, ele vai terminar no Piratini e se reunir com o governador, ou no Zumbi para dispersar. Não interessava, chegava no final, as pessoas começavam a gritar ‘RBS, RBS’ e ia para a RBS”, continua o sindicalista. Em junho, nunca chegaram, porque sempre havia uma barreira de dezenas de policiais enfileirados para defender o prédio.
Após o último ato de junho, a Prefeitura de Porto Alegre cedeu tudo aquilo que estava disposta a ceder. Abrindo mão da cobrança de ISSQN sobre o transporte coletivo, assinou em 2 de julho uma legislação reduzindo a tarifa de R$ 2,85, congelada em razão da liminar, para R$ 2,80.
Segundo o ex-prefeito José Fortunati, a decisão de reduzir a tributação não foi isolada da Prefeitura de Porto Alegre, mas resultado de uma articulação da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) com o governo federal. “Foi pensada nacionalmente, na maioria das cidades foi feito isso. A ideia era trabalhar com o Regime Especial de Incentivos para o Transporte Coletivo Urbano e Metropolitano de Passageiros (Reitup), que previa a desoneração de uma série de tributos, especialmente federais, o que ia permitir que a gente reduzisse a passagem”, diz. Ele salienta que reduzir o valor da passagem por outro tipo de medida iria provocar o “sucateamento” do sistema.
O mais longo mês da década chegou ao fim. Numa tentativa de manter os impulsos ativos, mas reaproximá-los de uma pauta mais popular, de esquerda, o Bloco de Luta convoca um protesto na Vila Cruzeiro em parceria com o Comitê Popular da Copa, que à época lutava contra as remoções forçadas que o poder público efetuava em Porto Alegre para levar adiante as chamadas obras da Copa. A Cruzeiro, uma das grandes vilas da Capital, encravada entre as duas principais avenidas de acesso do Centro à zona sul da cidade, era palco de um dos processos mais complicados. Para a duplicação da Av. Tronco, cerca de 1,5 mil família seriam afetadas. A obra era considerada vital para o acesso ao Beira-Rio durante os jogos, mas sequer seria concluída (e ainda não foi) a tempo. No ano seguinte, uma simples decisão de bloquear o acesso de carros ao estádio a tornaria desnecessária. Mas, em junho de 2013, as famílias da Tronco resistiam para não serem retiradas de suas casas.
Uma das coordenadoras do Comitê Popular da Copa à época, a arquiteta Cláudia Favaro estava diretamente ligada à luta das famílias da Tronco. Ela explica que a ideia do protesto na região surgiu quando, em uma assembleia do Bloco realizada entre o final de junho e o início de julho, um líder comunitário pediu a palavra e explicou o que estava acontecendo. Não havia reivindicado a realização de um protesto na Cruzeiro, mas os movimentos aderiram espontaneamente e decidiram que esse seria o palco da próxima manifestação.
Mas, Claudia explica, a mobilização na periferia é diferente do Centro. É preciso, por exemplo, contar com algum tipo de anuência do quarto poder, o tráfico de drogas, para poder fazer a panfletagem e colocar um carro de som para fazer a convocação. Ainda havia resistência de pelo menos duas lideranças que, no período de organização, alardeavam que a ação não seria bem recebida na Cruzeiro. “A gente ficou com receio, mas graças a deus foi tudo bem bonito”, diz Claudia.
Ela conta que a marcha começou com 300, no máximo 400 pessoas, ligadas ao Bloco e vindas de outras partes da cidade. Mas, ao longo da avenida da Tronco, a marcha foi encorpando. “As famílias paravam nas portas das casas, gritavam a participavam. Quando a gente chegou na vila Barracão, viu a juventude da comunidade descendo o morro”, relembra. A caminhada pela região duraria quase três horas.
À época, segundo as notícias que então circulavam, o Jockey Club estava negociando vender o seu gigantesco terreno no Cristal para a Multiplan, proprietária do Barra Shopping Sul, vizinho do campo de corridas de cavalo. Pensou-se até em ocupar a área para pressionar a Prefeitura a realocar as famílias atingidas pela remoção naquele mesma região, mas, quando o protesto chegou à Av. Icaraí, a maior parte dos moradores retornou à vila, deixando para a juventude dos movimentos a tarefa de concluir o ato com uma manifestação diante do Jockey.
O Brasil já seguia adiante. Os movimentos tentavam continuar mobilizados. Em 10 de julho, em mais uma ação voltada para a pauta do transporte público, houve a ocupação da Câmara de Vereadores. Em um primeiro momento, 50 pessoas participaram da ação. Na primeira noite, já eram 200. Reivindicavam uma legislação que estabelecesse o passe livre para estudantes e desempregados, além da abertura da “caixa preta” das empresas de ônibus. Fetzner avalia que a ocupação da Câmara foi uma “última tentativa de formação de consenso”. Voltou-se às origens, com a participação apenas dos envolvidos na militância.
A ocupação da “Casa do Povo que não representa o povo”, como dizia uma das faixas, durou oito dias. Só foi encerrada com um acordo que resultou na apresentação de dois projetos elaborados pelo Bloco e protocolados pelas bancadas do PSOL e do PT que visavam garantir, justamente, o passe livre para estudantes, desempregados, indígenas e quilombolas e a abertura das contas das empresas. Uma vitória, mas de curta duração. Os projetos logo seriam engavetados sem nunca irem à votação.
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